quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Sobre perda, sobre falta, sobre ausência, sobre dor - uma carta de despedida

(Este texto eu escrevi para ler como uma despedida na cerimônia de cremação da minha tia, que morreu em 27/10/2015. Desde então, vou aprendendo a viver com essa ausência na minha vida. Hoje seria seu aniversário)

Ontem, eu perdi minha tia e minha grande amiga. Ia começar este texto dizendo isso. Daí, achei besta. Porque perder é um verbo esquisito que traz uma certa esperança em si. A gente perde alguma coisa pensando que é um estado temporário. Perdi, mas logo vou achar, vou procurar mais e daqui a pouco aparece. Perder é um verbo que não combina com a perenidade da morte.
Eu não perdi a minha tia, porque eu não vou mais encontrá-la. A minha tia se foi. E ela nunca mais vai voltar.
Foi assim que eu expliquei o que aconteceu para os meus filhos hoje de manhã. Eu disse para eles que quando a gente quiser encontrar a tia Lu de novo, a gente vai ter que olhar as fotos. Ou fechar os olhos e olhar nas nossas lembranças.

Eles não estão preparados para entender isso. Eu também não.

Lu, em Abercorn, Canadá, em dezembro de 2013

É esquisito eu querer falar alguma coisa aqui. Seguramente, vocês que me ouvem esperavam que eu fizesse um discurso exaltando a minha tia, nas suas muitas qualidades, relevando os seus defeitos, cheio de adjetivos bonitos para botar em palavras a falta que todos sentiremos.

Achei curioso que, ao avisar para as pessoas sobre o que aconteceu e sobre como faríamos essa despedida, eu disse aos amigos: “não faremos velório; a Malu odiaria”. E todos concordaram: realmente, ela odiaria. Essa franqueza de saber-se era uma característica incrível da Malu. E ela era assim mesmo. Ela odiaria um velório. Era muito alto-astral e um tanto pragmática para um ritual de despedida longo e sem sentido. 

Fiquei imaginando o que mais eu poderia dizer para que nós nos sentíssemos todos um pouco conectados neste momento.
Agora, e talvez egoisticamente, eu não sou capaz de pensar em nada tão eloquente ou grandioso. Eu só consigo pensar na falta que ela fará por aqui. Na minha vida, na vida da minha mãe, na vida dos meus filhos, para toda a nossa família.
Ontem, eu estava pensando alto em todas as coisas que vão acontecer no futuro próximo e que a minha tia não vai estar aqui para ver. Meu marido, Guiba, ao meu lado nessa hora, me disse para não pensar assim; para pensar em tudo o que a Lu viveu junto com a gente.

A minha tia sempre foi o quinto elemento da nossa família, quando éramos minha mãe, meu pai, meu irmão e eu. Quando chegaram os nossos companheiros, quando chegaram os meus filhos, que já vieram em dobro, a família sempre dava número ímpar à mesa, porque a tia Lu estava sempre lá.

Minha tia estava sempre lá. Mesmo quando eu morava em Montreal, ela foi para lá visitar a gente e passar o aniversário dela comigo e com Guiba. Mesmo quando nossos filhos nasceram, com 20 graus negativos e neve até a cintura, ela foi para lá estar com a gente nesse momento tão bacana.
Quando os meninos não tinha nem um mês de vida, minha tia caminhava pela casa onde estávamos, com o André ou o Martin no colo, mostrando para eles cada obra de arte na parede e explicando as diferentes técnicas utilizadas pelos artistas.  No aniversário de um ano dos meninos, ela (acreditem!) participou da força tarefa de enrolar brigadeiros. Há duas semanas, quando o Martin passou por um exame sério, minha tia estava lá com a gente no hospital. Nos menos de dois anos de vida dos meus pequenos, ela deu tantos livros de presente para os dois que a biblioteca deles já é imensa. Na sexta passada, os meninos não tiveram aula e ela ficou a tarde toda junto com a minha mãe brincando com eles para nós. Ela não topou trocar nenhuma fralda dos meninos, isso já era demais. Mas era uma das pessoas preferidas deles nas brincadeiras. Aliás, acho que brincar com os meninos era atualmente a sua atividade preferida.

E isso é só o que estava acontecendo agora nas nossas vidas e que foi interrompido de uma maneira tão brusca.
De toda a minha vida, eu tenho tantas lembranças e tantas histórias...

A minha tia era a minha segunda mãe. Claro que ela não tinha todas as características de uma mãe. Mas ela tinha a grande qualidade de me dar ouvidos quando eu queria reclamar da minha mãe. E eu sei que ela também dava ouvidos à minha mãe quando ela queria reclamar de mim. Aliás, essa parceria das duas, minha mãe e minha tia, era tão intensa que quando eu ou meu irmão contávamos um segredo para a minha mãe, já colocávamos na conta que a minha tia também saberia. Como a vida fica sem essa parceria, sem essas parcerias? A gente vai precisar entender.

Minha tia esteve em todos os momentos importantes da minha vida. E também nos desimportantes. Era a melhor companhia para um cinema. E para uma exposição de arte. Com ela, aprendi tantas coisas sobre arte, sobre psicanálise, sobre cinema, sobre óperas. Ela até tentou me fazer gostar de música clássica, mas nessa ela não teve sucesso. Minha tia me ajudou em todas as minhas mudanças de casa – que não foram poucas. De carregar caixas de livros a arrumar armários, ela estava lá. E na última mudança, quando voltamos ao Brasil, ela e meu pai arrumaram a minha casa inteira antes da gente chegar. Dessa vez, depois de ainda me ajudar a dar conta das 12 malas que vieram no avião, minha tia disse que nunca mais me ajudaria numa mudança. Naquele momento, eu sabia que era mentira. Hoje, sei que é verdade.

Sinto que lidar com essa ausência é a coisa mais difícil que até hoje já passei na vida. E eu nem sei por onde começar. Ontem, quase levei uma orquídea da casa da minha tia. Achei que eu poderia cuidar da orquídea e lembrar dela. Depois pensei que faria muito pouco sentido botar numa orquídea que a minha tia tinha acabado de ganhar uma lembrança tão importante. Até porque eu e ela sempre fomos péssimas cuidadoras de flores. Não, não é na flor. Não é em nenhum objeto especial ou prosaico que herdarei – e que de que cuidarei com todo o carinho. Não é nas fotos. Não é no lugar ou nos lugares onde jogaremos as suas cinzas. Em nenhum lugar essa lembrança vai ficar concretizada. A falta é na vida. E o aprendizado que vem é como viver essa nova vida que se impõe sem a sua presença.

Enfim, eu só queria dizer alguma coisa. E acho que, se algum dia a minha tia pensou em como seria a sua despedida, ela desejou que eu estivesse aqui falando algumas palavras. Porque eu sinto que esses meus momentos de discursos eram daquelas coisas que ela publicamente odiava e secretamente adorava.

Tia, querida, muito obrigada por ser quem você era e estar sempre por aqui. Obrigada por tudo.
Nós ficamos agora com a triste perspectiva de irmos nos acostumando com uma nova vida em que você vive só nas nossas lembranças.

Eu e a Lu, há exatos 3 anos, comemorando o seu aniversário em Montreal, Canadá (numa foto absurdamente desfocada, mas com um super astral)