quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Sobre perda, sobre falta, sobre ausência, sobre dor - uma carta de despedida

(Este texto eu escrevi para ler como uma despedida na cerimônia de cremação da minha tia, que morreu em 27/10/2015. Desde então, vou aprendendo a viver com essa ausência na minha vida. Hoje seria seu aniversário)

Ontem, eu perdi minha tia e minha grande amiga. Ia começar este texto dizendo isso. Daí, achei besta. Porque perder é um verbo esquisito que traz uma certa esperança em si. A gente perde alguma coisa pensando que é um estado temporário. Perdi, mas logo vou achar, vou procurar mais e daqui a pouco aparece. Perder é um verbo que não combina com a perenidade da morte.
Eu não perdi a minha tia, porque eu não vou mais encontrá-la. A minha tia se foi. E ela nunca mais vai voltar.
Foi assim que eu expliquei o que aconteceu para os meus filhos hoje de manhã. Eu disse para eles que quando a gente quiser encontrar a tia Lu de novo, a gente vai ter que olhar as fotos. Ou fechar os olhos e olhar nas nossas lembranças.

Eles não estão preparados para entender isso. Eu também não.

Lu, em Abercorn, Canadá, em dezembro de 2013

É esquisito eu querer falar alguma coisa aqui. Seguramente, vocês que me ouvem esperavam que eu fizesse um discurso exaltando a minha tia, nas suas muitas qualidades, relevando os seus defeitos, cheio de adjetivos bonitos para botar em palavras a falta que todos sentiremos.

Achei curioso que, ao avisar para as pessoas sobre o que aconteceu e sobre como faríamos essa despedida, eu disse aos amigos: “não faremos velório; a Malu odiaria”. E todos concordaram: realmente, ela odiaria. Essa franqueza de saber-se era uma característica incrível da Malu. E ela era assim mesmo. Ela odiaria um velório. Era muito alto-astral e um tanto pragmática para um ritual de despedida longo e sem sentido. 

Fiquei imaginando o que mais eu poderia dizer para que nós nos sentíssemos todos um pouco conectados neste momento.
Agora, e talvez egoisticamente, eu não sou capaz de pensar em nada tão eloquente ou grandioso. Eu só consigo pensar na falta que ela fará por aqui. Na minha vida, na vida da minha mãe, na vida dos meus filhos, para toda a nossa família.
Ontem, eu estava pensando alto em todas as coisas que vão acontecer no futuro próximo e que a minha tia não vai estar aqui para ver. Meu marido, Guiba, ao meu lado nessa hora, me disse para não pensar assim; para pensar em tudo o que a Lu viveu junto com a gente.

A minha tia sempre foi o quinto elemento da nossa família, quando éramos minha mãe, meu pai, meu irmão e eu. Quando chegaram os nossos companheiros, quando chegaram os meus filhos, que já vieram em dobro, a família sempre dava número ímpar à mesa, porque a tia Lu estava sempre lá.

Minha tia estava sempre lá. Mesmo quando eu morava em Montreal, ela foi para lá visitar a gente e passar o aniversário dela comigo e com Guiba. Mesmo quando nossos filhos nasceram, com 20 graus negativos e neve até a cintura, ela foi para lá estar com a gente nesse momento tão bacana.
Quando os meninos não tinha nem um mês de vida, minha tia caminhava pela casa onde estávamos, com o André ou o Martin no colo, mostrando para eles cada obra de arte na parede e explicando as diferentes técnicas utilizadas pelos artistas.  No aniversário de um ano dos meninos, ela (acreditem!) participou da força tarefa de enrolar brigadeiros. Há duas semanas, quando o Martin passou por um exame sério, minha tia estava lá com a gente no hospital. Nos menos de dois anos de vida dos meus pequenos, ela deu tantos livros de presente para os dois que a biblioteca deles já é imensa. Na sexta passada, os meninos não tiveram aula e ela ficou a tarde toda junto com a minha mãe brincando com eles para nós. Ela não topou trocar nenhuma fralda dos meninos, isso já era demais. Mas era uma das pessoas preferidas deles nas brincadeiras. Aliás, acho que brincar com os meninos era atualmente a sua atividade preferida.

E isso é só o que estava acontecendo agora nas nossas vidas e que foi interrompido de uma maneira tão brusca.
De toda a minha vida, eu tenho tantas lembranças e tantas histórias...

A minha tia era a minha segunda mãe. Claro que ela não tinha todas as características de uma mãe. Mas ela tinha a grande qualidade de me dar ouvidos quando eu queria reclamar da minha mãe. E eu sei que ela também dava ouvidos à minha mãe quando ela queria reclamar de mim. Aliás, essa parceria das duas, minha mãe e minha tia, era tão intensa que quando eu ou meu irmão contávamos um segredo para a minha mãe, já colocávamos na conta que a minha tia também saberia. Como a vida fica sem essa parceria, sem essas parcerias? A gente vai precisar entender.

Minha tia esteve em todos os momentos importantes da minha vida. E também nos desimportantes. Era a melhor companhia para um cinema. E para uma exposição de arte. Com ela, aprendi tantas coisas sobre arte, sobre psicanálise, sobre cinema, sobre óperas. Ela até tentou me fazer gostar de música clássica, mas nessa ela não teve sucesso. Minha tia me ajudou em todas as minhas mudanças de casa – que não foram poucas. De carregar caixas de livros a arrumar armários, ela estava lá. E na última mudança, quando voltamos ao Brasil, ela e meu pai arrumaram a minha casa inteira antes da gente chegar. Dessa vez, depois de ainda me ajudar a dar conta das 12 malas que vieram no avião, minha tia disse que nunca mais me ajudaria numa mudança. Naquele momento, eu sabia que era mentira. Hoje, sei que é verdade.

Sinto que lidar com essa ausência é a coisa mais difícil que até hoje já passei na vida. E eu nem sei por onde começar. Ontem, quase levei uma orquídea da casa da minha tia. Achei que eu poderia cuidar da orquídea e lembrar dela. Depois pensei que faria muito pouco sentido botar numa orquídea que a minha tia tinha acabado de ganhar uma lembrança tão importante. Até porque eu e ela sempre fomos péssimas cuidadoras de flores. Não, não é na flor. Não é em nenhum objeto especial ou prosaico que herdarei – e que de que cuidarei com todo o carinho. Não é nas fotos. Não é no lugar ou nos lugares onde jogaremos as suas cinzas. Em nenhum lugar essa lembrança vai ficar concretizada. A falta é na vida. E o aprendizado que vem é como viver essa nova vida que se impõe sem a sua presença.

Enfim, eu só queria dizer alguma coisa. E acho que, se algum dia a minha tia pensou em como seria a sua despedida, ela desejou que eu estivesse aqui falando algumas palavras. Porque eu sinto que esses meus momentos de discursos eram daquelas coisas que ela publicamente odiava e secretamente adorava.

Tia, querida, muito obrigada por ser quem você era e estar sempre por aqui. Obrigada por tudo.
Nós ficamos agora com a triste perspectiva de irmos nos acostumando com uma nova vida em que você vive só nas nossas lembranças.

Eu e a Lu, há exatos 3 anos, comemorando o seu aniversário em Montreal, Canadá (numa foto absurdamente desfocada, mas com um super astral)







segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Sobre um primeiro ano

Há quase um ano estávamos, Guiba e eu, naquele misto de ansiedade e conforto. Ansiedade para que os nossos bebês chegassem logo. E conforto em saber que: 1) quanto mais eles demorassem, mais eles iriam nascer prontinhos para encarar esse mundo e 2) desde o momento em que eles chegassem por aqui, a nossa vida nunca mais seria a mesma, fazendo com que tivéssemos a vontade deaproveitar a vida tal qual conhecíamos até então (e terminar de ver Breaking bad, claro).
Há quase um ano, já sem dormir, porque, né?, se um não dorme, ninguém dorme (essa é a máxima e viria a ser a rotina desde então), esperando e esperando e imaginando o futuro.
E na manhã do dia 29 de novembro, eles chegaram. 
Com um tanto de alarde, holofotes e num parto quase cômico - visto que saíram dessa mãe aqui que curte um certo alarde, holofotes e uma vida quase cômica - André nasceu primeiro e Martin chegou 20 minutos depois.

E como era esperado, a vida nunca mais foi a mesma. 
Nesse ano, vivemos muitas coisas. Tantas que parece que faz mais de ano.
E estamos aqui nos conhecendo e reconhecendo a cada dia. 
Eu, mãe. Guiba, pai. 
Nós dois conhecendo nossos filhos que são parecidos fisicamente (para vocês, tá?), mas têm personalidades completamente diferentes. 
E Dedé e Tintin que vão sendo e aprendendo a ser. 
Reconhecendo que são pessoinhas. E que o mundo é o mundo. E que eles fazem parte dessa complexa lógica que é ser uma mini-pessoa nesse mundo. 
E aprendendo a ser nossos filhos. E se reconhecendo como irmãos.

Enfim, faz um ano que vamos nessa toada de vida toda bagunçada com a chegada dos nossos filhos. 
E depois de um ano, acho que estamos prontos para reconhecer que a vida toda bagunçada é a vida que é. 
É agora a nossa vida.
E que a vida toda bagunçada está sendo muito divertida e especial. E estamos todos muito felizes!

André e Martin engatinhando na chácara, novembro de 2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sobre memórias e heranças


Para o meu irmão, Pedro, 
e meus primos Bruno, Marcelo,
Roberta e Fernanda,
que dividem essas memórias comigo

Ontem quando eu soube da morte do meu avô, quis escrever esse texto. Um pouco para homenageá-lo, um pouco para compartilhar o meu sentimento, um pouco para colocar em palavras esse momento doído. Meu avô gostava das palavras e é justo me despedir dele com palavras escritas para ele.
Fui começar o texto pensando em contar um pouco da história do meu avô. Mas como não herdei do meu avô a sua boa memória, minha lembrança se resumia a fatos esparsos (seu pai era do Nordeste – Sergipe, talvez? e trabalhava nos correios – acho que era telégrafos, na verdade – e por isso eles mudaram muito pelo estado de São Paulo, meu avô nasceu em Faxina – era isso? que passou a se chamar o que mesmo?; ele morou em Piracicaba..., ele tinha 8 irmãos, quase todos com nomes ingleses, ele trabalhou na Nadir Figueiredo, lá ele conheceu a minha avó...).
Fiquei um tempo tentando montar uma narrativa de vida e quando me dei conta de que não tenho na memória essa narrativa, lamentei por não poder contar a vida do meu avô assim, do começo ao fim.
Lamentei sinceramente não ter nunca parado para anotar essa história e guarda-la para não esquece-la...
Mas meu lamento durou pouco, porque me dei conta de que toda essa narrativa de fatos que fizeram parte da história do meu avô não importam tanto para mim como eu saber quem foi o meu avô para mim.
Me dei conta de que mais importante do que saber onde meu avô nasceu é lembrar do meu avô do dia-a-dia. Essa lembrança que, seguramente, eu divido com meu irmão e com meus primos e primas.
O vovô Nelson, que se auto-intitulava Nego Duro, sentado no seu canto do sofá, com a TV ligada, intercalando cochilos com as palavras-cruzadas e chamando “Dilza!” a cada 5 minutos para que ela viesse atender o telefone ou ver o menino que tá subindo a escada sozinho.
Ou o meu avô dizendo para a gente tomar cuidado com o vento encanado, proibindo a gente de tomar banho depois de comer, e mandando a gente acender a luz e segurar no corrimão para subir a escada (isso desde o dia em que começamos a andar e subir a escada sozinhos até ontem).
O vô Nego Duro que adorava acertar o cuco, tarefa que depois ele passou pro meu pai, e que estava sempre cantarolando uma música qualquer inventada por ele mesmo.
Nosso avô que ensinou para a gente uns versinhos esquisitos, umas rimas malucas (eu com a minha filha, comadre cadela... sonhei com a imagem tua...), que a gente só viria a entender a graça depois de velhos, mas que mesmo assim, a gente decorava e repetia só para irritar os nossos pais, envergonhar a vovó e fazer o vovô dar risada.
O vovô que fez acrósticos para mim e para as minhas primas quando a gente nasceu.
O meu avô, que sempre andou manco e usou bengala e que mesmo assim saiu me carregando do mar quando uma água-viva me queimou.
O vovô que quando foi operado de hérnia e foi viajar conosco, subia a escada do hotel bem devagar, rezando uma ave maria ou um pai nosso a cada degrau subido.
O vô Nego Duro que ficou todo ofendido quando meu irmão, vendo o seu bom desempenho na sinuca, disse que o vô era rabudo.
O vovô que trocava o nome dos netos e dos filhos e só não trocava mesmo o nome da vó Dilza.
O vovô que vinha dar tchau para a gente no portão de casa e esperava na calçada a gente sair com o carro para fechar o portão.
O vovô que gostava de comer doce e que tomava café com leite e pão todos os dias no fim da tarde.
O vovô que dirigia o seu Corcel azul, que sempre nos assustava nas ladeiras porque ele tremia a perna e o carro descia.
O vovô que não gostava de sair de casa e que enchia o saco da vovó porque ela adora bater perna pela Vila Maria. E que mesmo depois de velho, ainda tinha ciúme da vovó quando ela saía batendo perna por aí.
O meu avô que mesmo de bengala dançou comigo a valsa da minha formatura da oitava série.
O vovô que gostava de Nelson Rodrigues, de Orlando Silva e de Pixinguinha (Tú és divina e graciosa...).
O vovô que até agora não sabemos se era bem santista, são paulino ou corintiano e que acompanhava com afinco todos os jogos da rodada do campeonato para comentar com o meu pai os resultados.
O vovô friorento e vaidoso, que nunca usou uma camiseta, sempre se vestia todo alinhado de camisa e calça social, mesmo para ficar em casa o dia todo. E que usava gel no cabelo, tinha aquele pente redondo para pentear o topete e fazia a barba todos os dias. O vovô que sempre era o último a acordar e que descia de banho tomado e todo perfumado.
Meu avô sempre de bom humor e sempre um pouco preocupado, gozador como só ele, e sempre com tempo para jogar conversa fora com os filhos e com os netos.
Tenho mil e uma lembranças do meu avô. Desse meu avô de todos os dias. E tenho certeza que se tivesse tido tempo de conversar com meu irmão, meus primos, meu pai e meus tios, essa lista de memórias ia ser infinita.
É muito triste ver o meu avô partir. Depois de voltar para casa depois de algumas quantas vezes que ele foi parar no hospital e que a gente achava que de lá ele não voltaria, eu meio que fiz uma imagem do vô Nego Duro como um nego duro mesmo. Assim, invencível.
Mas ele não era invencível. Ninguém é.
E o que consola na hora da morte é, além da lembrança do vovô que fica, saber que ele segue com a gente. E não porque eu acredite em qualquer coisa metafísica. Mas porque essa coisa de família é danada! Nós seguimos por aqui, carregando o vovô em nós, e muito além de sobrenome, vamos levando o vovô em nós por causa dessa coisa de genes mesmo.
E olhando para o meu pai, meu tio, minha tia, meu irmão, meus primos, minhas primas e agora também os meus filhos, a gente vai reconhecendo um pouco de Nego Duro em todos nós.
Vejo meu avô no meu tio e na minha tia que têm uma memória invejável. Minha tia e meu pai com um senso de direção invejável...
Minha tia que troca o nome de todo mundo. Meu pai que não se abala se não souber cantar a música, já que ele inventa.
Eu acho que herdei a oratória. O Bruno, a memória. O Pedro inventa apelido para todo mundo. O Marcelo se concentra nos seus jogos como meu avô se concentrava nas suas palavras-cruzadas. A Roberta é uma gozadora de marca maior. A Fernanda adora contar histórias... Meus filhos ainda são muito pequeticos, mas seguramente vão carregando algo do bisavô neles também.
E assim vamos indo.
Ontem, quando soubemos da notícia de que meu avô tinha partido, o Guiba falou para mim que a vida era assim mesmo: os velhos vão dando lugar aos novos.
O vô Nelson morreu agora que o André e o Martin nasceram, o que é natural. Lamento que meus filhos não puderam conviver com o biso deles. Mas eu sei que é natural e só posso mesmo ficar muito agradecida de ter convivido tanto com o meu avô. E de, mesmo sendo desmemoriada, ter tantas lembranças dele.
Então, fico por aqui. Com a certeza de que meu avô aproveitou a vida dele e que ele partiu contente de saber que a nossa família vai crescendo. E que a vida segue.

Nego Duro, vai com deus e a virgem maria. E tome banho de bacia. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Sobre chegadas

Na realidade, 20 de novembro de 2013.

Revivendo o blog num momento de espera. E revivendo arquivos, fotos e outros momentos. Enquanto espero, espero e espero.
E como o momento é de espera, mas de chegadas, quis deixar registrada aqui a cartinha que escrevi para a Teodora, filha da minha muito-muito-muito querida amiga Ester, quando ela nasceu em julho deste ano.
  


Montreal, 16 de julho de 2013


Teodora, minha querida,

Seja muito bem vinda a este mundo!!!
Em primeiro lugar, deixa eu me apresentar, eu sou a Marina. Você pode me chamar de tia Marina, apesar de eu saber que você já tem uma tia oficial chamada Marina. 
Assim sendo, você pode me chamar de tia Marinóvski (como sua mamis me chama), de tia MM, de tia Marinão ou do que você quiser. Com o tempo, a gente se ajusta nos nomes, no worries.
Eu, por minha parte, decidi te chamar de Dorinha. Escolhi Dorinha porque acho que seus pais não vão gostar muito do apelido e eu achei por bem ser uma tia pentelha para dar uma subvertida nas coisas. Mas, veja só, se você não gostar de Dorinha, eu posso reconsiderar o apelido. Digo que posso porque, como tia pentelha como já me assumi, pode ser que eu te chame de Dorinha na frente dos seus amigos quando você for uma adolescente, di modi a te fazer passar vergonha. Percebe?
Assim são as tias pentelhas...
Bom, estou escrevendo primeiro para me apresentar.
Eu sou amiga de sua mãe desde os idos anos 2002. Na verdade, eu conheço sua mamis desde 2002, mas não sei bem dizer quando foi que viramos BFF (best friends forever – tô explicando pra você e pra sua mamis, que sempre reclama das minhas expressões em outras línguas). Pois é, não sei dizer quando foi que viramos assim muito amigas. Mas viramos. E hoje somos muito-muito-muito amigas (essa também é para sua mamis, ou melhor, em homenagem à ela, que adora muito-muito-muito uma repetição).
Enfim, mas o fato é que eu e a sua mamis somos muito amigas. Do tipo que já vivemos um montão de coisas juntas. Nós nos conhecemos na faculdade, na SanFran (SãoFran, segundo sua mamis. Ó, isso vai ficando claro aos poucos na sua vida, tá? Não precisa se preocupar em aprender tudo agora...), aliás, acho que foi lá que sua mamis e seu papis se conheceram também. Bom, eu e sua mamis nos conhecemos na faculdade, fizemos política juntas no Grupo Ruptura (depois ela te conta mais) e assim fomos ficando amigas. Fizemos mil programas juntas. Viajamos juntas para vários lugares também, como para Buenos Aires, para Porto Alegre no Fórum Social Mundial, para Caraíva numa virada de ano, para o Rio em muitos carnavais, para vários congressos internos em Salto (na casa do tio Bruno, que você deve conhecer logo) e em outros interiores, para vivências, e sei lá mais quantas coisas que inventávamos. Eu também já fui visitar sua mamis em Munique, quando ela morava por lá e eu morava em Paris (muito phyna eu, eu sei), apesar de ela não ter ido me visitar em Paris, o que é quase imperdoável. Nós já rimos muito juntas e choramos juntas algumas vezes também. Já passamos uns enroscos e já resolvemos todos os problemas da humanidade e mais os problemas das nossas vidas em incontáveis mesas de bar. Nós já até moramos juntas, para você ter uma ideia. E sobrevivemos a isso! Considerando que somos pessoas bem diferentes no jeito de organizar uma casa, como você vai descobrindo, devo dizer que nós nos saímos muito bem na empreitada (e seu papis deve me agradecer todos os dias por ter contribuído com a treinamento de uma Ester mais organizada – hehe!).
Entonces, tudo isso para te contar quem sou eu na sua vida. Na real, estou te contando quem sou eu na vida da sua mamis, né? Mas do tanto que sou amiga da sua mamis, acho que a gente também pode ser amiga, né não??? Acho que essas já são boas credenciais para você me considerar uma pessoa de bem, diz aí?
De qualquer forma, eu juntei aqui umas fotinhos minhas e da sua mamis juntas em diferentes momentos dessa vida para você ver do que estou falando. Ah! E para você me reconhecer também, quando a gente se conhecer pessoalmente, né?
E, ó, repara que na última fotito você tá também! Tá dentro da barriga da sua mamis (como você chegou lá, sua mamis e papis vão se encarregar de te explicar um dia, belê?). Mas você tá lá! E eu tô te mandando um beijinho, viu só?
Bom, voltando, eu não estou por aí acompanhando de pertinho fisicamente o seu nascimento porque estou morando em Montreal, no Canadá. Montreal fica no Norte do mundo, mais precisamente na América do Norte. Tipo isso, só que ao contrário, ó:

Então, eu moro aqui desde 2012, pois vim trabalhar nas bandas de cá. Longa história sobre como vim parar aqui – um dia te conto – mas é por isso que não estou aí agora. E se a vida por aqui não tivesse dado toda uma embolada (boa!, já volto a isso), seguramente eu teria ido fazer uma visita para acompanhar a sua chegada nas bandas daí.
Mas voltando ao mundo do trabalho, eu estou aqui porque trabalho com prevenção da violência. Mais tarde você vai entender do que se trata. Por ora, basta dizer que estou aqui tentando mudar um pouquinho o mundo. Porque sabe Dorinha, esse mundo em que você chega agora tá precisando de uma chacoalhada, viu?     

Acho que estamos bem no processo de transformá-lo, mas ainda temos um longo caminho pela frente. Especialmente para as mulheres, Dorinha. Você vai se ligar um dia de como a história da humanidade é uma história dos homens. As mulheres só começaram a participar ativamente de forma substantiva dessa história no século XX, acredita??
Esse é um tema super complexo, não vou te explicar agora, mas você pode ter aí em conta de que você está nascendo num mundo muito diferente para as mulheres do que quando as suas bisavós nasceram (ainda bem!!!). E essa transformação ainda está em processo...

De qualquer forma, existem pessoas que estão por aqui já batalhando para deixar um mundo muito mais bacana para você viver. Eu estou tentando fazer minha microparte nessa história. Sua mamis também faz o mesmo por aí. O seu papis e o seu tio Guiba (meu marido, que você também vai conhecer pessoalmente logo menos), também estão nessa luta. E mais um montão de amigos nossos e outras tantas pessoas que nem sabemos quem são em todos os cantos do mundo.
Dorinha, não é difícil ser uma pessoa que quer mudar o mundo e trabalhar para isso, sabia? Começar se indignando com as injustiças que existem por aí é o primeiro passo. E depois, é só você pensar em como você pode fazer a sua parte para tornar o mundo mais bacana e justo para todo mundo.

Nós estamos nessa luta e eu tenho certeza que você se juntará a nós. Eu sei, eu sei, parece grandes expectativas, né? Mas, olha, nascendo aí na sua família, eu tenho todos os motivos do mundo para ter altas expectativas.
Agora, veja, não se sinta pressionada, tá bom? Eu acho que ser uma pessoa que quer fazer do mundo um lugar mais bacana é o caminho natural. Ninguém está esperando demais de você, nem estamos apostando as nossas fichas em você porque somos frustrados com as nossas escolhas. Nada disso!
Só estamos todos confiantes (aqui estou incluindo seus pais, o resto da família e mais a família ampliada que são os amigos do coração – você vai entender um dia) de que com a educação que você terá aí na sua casa, com os seus pais, você naturalmente será uma pessoa bacana querendo deixar o mundo um lugar melhor para todas as pessoas.

E, Dorinha, pode se considerar uma pessoa privilegiada por ter nascido nessa sua família aí. Seus pais são pessoas incríveis que vão te apresentar o mundo de um jeito todo especial...

Eles vão errar, seguramente, acho que esse é o normal. Mas eles vão acertar mais do que errar no longo prazo, pode confiar nisso.
E quando você estiver de saco cheio dos seus pais, você pode correr para os seus tios – tipo para a sua tia aqui. Porque os tios, em geral, tendem a te defender dos seus pais, mesmo que, no fundo, eles concordem mais com os seus pais. É uma coisa de solidariedade familiar e de birra entre adultos, sei lá, tô divagando aqui, mas acho que você pode confiar nessa minha intuição.

Assim, se você quiser apoio para as suas crises existencias adolescentes mal compreendidas pelos seus pais, por exemplo, pode vir, que estarei de braços abertos. Se você quiser que alguém te ensine a criar um perfil no facebook ou a mexer no seu celular novo, também pode me procurar (se é que eu vou ser assim tão atualizada quando você tiver idade para essas coisas, hehe). Mas sério, podemos pensar em várias situações em que você pode me procurar para te apoiar.
Agora, veja só, se for para pedir princesa da Disney de aniversário ou se quiser um adulto responsável para te levar no show da boy band do momento, minha amiga, melhor você contar com outros tios, tá bem? Que essas aí eu vou estar passando, meu bem.
Até porque, Dorinha, não te contei isso ainda, mas eu também serei mamis em breve, se tudo seguir bem. Estou por aqui fabricando na minha barriga dois amiguinhos para você. E, olha que bacana!, Dorinha, você será mais velha do que os meus filhos (eu ainda não sei se eles serão meninos ou meninas ou um menino e uma menina, tá?) e vai poder ensinar para eles muita coisa do alto da sabedoria que os seus seis meses de vida a mais lhe concedem.
Espero que você e meus filhos sejam amigos assim como eu sou amigona da sua mamis. Diz aí se não ia ser legal?
Vai ser legal também para a sua mamis se solidarizar com os meus filhos contra mim, assim como eu me solidarizarei com você contra ela, veja só!

Enfim, Dorinha, essa cartinha é só para começar essa nossa história juntas. Espero que muitas e muitas cartinhas ainda venham por aí. Eu vou a-do-rar receber uma cartinha sua quando você já souber escrever sozinha. Pensa só que bacana vai ser?
E pensa só que quando a gente for bem mais velha a gente vai ter um monte de cartinha para contar a nossa história? Que nem os seus pais têm um monte de emails para contar a história deles. E eu e sua mamis também temos também um monte de emails que contam a nossa história.

Ah! E a cartinha é também um registro desse dia em que você nasceu, porque estou aqui terminando essa cartinha no dia 16 de julho de 2013, exatamente no dia em que você nasceu.
Quem me contou que você nasceu foi a sua tia Quel. E me contou quase real time, porque eu pedi para ser assim. Apesar de estar longe, eu queria estar pertinho. E a tia Quel me deixou bem pertinho desse momento todo especial. Já vi algumas tantas fotinhos suas, que já estou até me sentindo íntima!
E também falei com a sua mamis logo cedinho para saber como foi a sua chegada. Falamos rapidinho, mas depois ela me conta tudo com calma, quando ela tiver mais tempo e quando ela também tiver processado tudo o que ela andou vivendo.
Para registrar esse dia, estou te mandando dois exemplares do dia de hoje de jornais que circulam por aqui em Montreal. São os jornais de distribuição gratuita que temos aqui, para você saber o que estava acontecendo no mundo – ou o que era notícia do que acontecia no mundo em Montreal no Canadá – no dia em que você nasceu. No 24h, tem até um horóscopo que fala sobre a personalidade de quem nasceu no dia de hoje. Olha lá. Tá em francês, mas pede pros seus pais traduzirem para você. Eu acho tudo isso uma baboseira – essa coisa mística, horóscopo, sei lá –, mas vai que você se identifica, né?
E, olha, vou admitir, uma cartinha decente merecia ser escrita à mão, eu sei disso. E você pode até ficar indignada com essa cartinha aqui. Mas me explico. É o seguinte, minha amiga, meu jeito de organizar o texto é todo caótico, de modo que vou editando tudo ao longo do que escrevo, começo pelo fim, volto pro começo, escrevo o meio e mudo tudinho de lugar de novo e várias vezes... Fora que vou escrevendo na cabeça, antes de botar no papel e vou escrevendo ao longo de dias e dias – essa cartinha começou há mais de mês, para você ter ideia. Assim sendo, eu resolvi escrever tudo isso no computador para depois passar a limpo. E você se adiantou e nasceu muito cedo e não deu tempo de passar a limpo...
Mentira! Mentira deslavada!!! Esse finalzinho é mentira. Você não está nada adiantada, flor. A verdade é que desde que saí da faculdade, eu não escrevo longos textos à mão e, veja só, minha mão não está mais acostumada a tamanho esforço e ela doía somente de imaginar que eu fosse passar tudo o que tá aqui a limpo. Tá ligada? Entonces, daí, que eu decidi que a cartinha ia ficar mesmo toda bonitinha ainda que fosse toda digitada, porque foi escrita com muito amor. Mas para melhorar a situação e deixar tudo mais pessoal, eu enchi a sua cartinha de Mafalda, porque tenho certeza que você vai gostar da Mafalda tanto quanto eu e seus pais gostamos, quando você for grande para entendê-la. Percebe? E aí, ficou bonitinha, vai? Acho que posso ser perdoada pela carta digitada, néééé?

Enfim, minha querida, escrevo para desejar as melhores boas vindas nesse mundo e para te contar que você foi toda muito querida e desejada por todo mundo que tá aí/aqui por perto. Que bom que você chegou!
E quero desejar também que sua vida seja muito cheia de vida por aí. E que ela seja toda repleta do seu bem viver, que você vai descobrindo e construindo ao longo do seu caminho.

Dorinha, te mando todo o meu carinho e um cheiro. Nos vemos em breve!
Com amor,
Marina