Para o meu irmão, Pedro,
e meus primos Bruno, Marcelo,
Roberta e Fernanda,
que dividem essas memórias comigo
Ontem quando eu soube da
morte do meu avô, quis escrever esse texto. Um pouco para homenageá-lo, um
pouco para compartilhar o meu sentimento, um pouco para colocar em palavras
esse momento doído. Meu avô gostava das palavras e é justo me despedir dele com
palavras escritas para ele.
Fui começar o texto
pensando em contar um pouco da história do meu avô. Mas como não herdei do meu
avô a sua boa memória, minha lembrança se resumia a fatos esparsos (seu pai era
do Nordeste – Sergipe, talvez? e trabalhava nos correios – acho que era
telégrafos, na verdade – e por isso eles mudaram muito pelo estado de São
Paulo, meu avô nasceu em Faxina – era isso? que passou a se chamar o que
mesmo?; ele morou em Piracicaba..., ele tinha 8 irmãos, quase todos com nomes
ingleses, ele trabalhou na Nadir Figueiredo, lá ele conheceu a minha avó...).
Fiquei um tempo tentando
montar uma narrativa de vida e quando me dei conta de que não tenho na memória
essa narrativa, lamentei por não poder contar a vida do meu avô assim, do começo
ao fim.
Lamentei sinceramente
não ter nunca parado para anotar essa história e guarda-la para não esquece-la...
Mas meu lamento durou
pouco, porque me dei conta de que toda essa narrativa de fatos que fizeram
parte da história do meu avô não importam tanto para mim como eu saber quem foi
o meu avô para mim.
Me dei conta de que mais
importante do que saber onde meu avô nasceu é lembrar do meu avô do dia-a-dia.
Essa lembrança que, seguramente, eu divido com meu irmão e com meus primos e
primas.
O vovô Nelson, que se
auto-intitulava Nego Duro, sentado no seu canto do sofá, com a TV ligada,
intercalando cochilos com as palavras-cruzadas e chamando “Dilza!” a cada 5
minutos para que ela viesse atender o telefone ou ver o menino que tá subindo a
escada sozinho.
Ou o meu avô dizendo
para a gente tomar cuidado com o vento encanado, proibindo a gente de tomar
banho depois de comer, e mandando a gente acender a luz e segurar no corrimão
para subir a escada (isso desde o dia em que começamos a andar e subir a escada
sozinhos até ontem).
O vô Nego Duro que adorava
acertar o cuco, tarefa que depois ele passou pro meu pai, e que estava sempre
cantarolando uma música qualquer inventada por ele mesmo.
Nosso avô que ensinou
para a gente uns versinhos esquisitos, umas rimas malucas (eu com a minha
filha, comadre cadela... sonhei com a imagem tua...), que a gente só viria a
entender a graça depois de velhos, mas que mesmo assim, a gente decorava e
repetia só para irritar os nossos pais, envergonhar a vovó e fazer o vovô dar
risada.
O vovô que fez
acrósticos para mim e para as minhas primas quando a gente nasceu.
O meu avô, que sempre
andou manco e usou bengala e que mesmo assim saiu me carregando do mar quando
uma água-viva me queimou.
O vovô que quando foi
operado de hérnia e foi viajar conosco, subia a escada do hotel bem devagar,
rezando uma ave maria ou um pai nosso a cada degrau subido.
O vô Nego Duro que ficou
todo ofendido quando meu irmão, vendo o seu bom desempenho na sinuca, disse que
o vô era rabudo.
O vovô que trocava o
nome dos netos e dos filhos e só não trocava mesmo o nome da vó Dilza.
O vovô que vinha dar
tchau para a gente no portão de casa e esperava na calçada a gente sair com o
carro para fechar o portão.
O vovô que gostava de
comer doce e que tomava café com leite e pão todos os dias no fim da tarde.
O vovô que dirigia o seu
Corcel azul, que sempre nos assustava nas ladeiras porque ele tremia a perna e
o carro descia.
O vovô que não gostava
de sair de casa e que enchia o saco da vovó porque ela adora bater perna pela
Vila Maria. E que mesmo depois de velho, ainda tinha ciúme da vovó quando ela
saía batendo perna por aí.
O meu avô que mesmo de
bengala dançou comigo a valsa da minha formatura da oitava série.
O vovô que gostava de
Nelson Rodrigues, de Orlando Silva e de Pixinguinha (Tú és divina e
graciosa...).
O vovô que até agora não
sabemos se era bem santista, são paulino ou corintiano e que acompanhava com
afinco todos os jogos da rodada do campeonato para comentar com o meu pai os
resultados.
O vovô friorento e
vaidoso, que nunca usou uma camiseta, sempre se vestia todo alinhado de camisa
e calça social, mesmo para ficar em casa o dia todo. E que usava gel no cabelo,
tinha aquele pente redondo para pentear o topete e fazia a barba todos os dias.
O vovô que sempre era o último a acordar e que descia de banho tomado e todo
perfumado.
Meu avô sempre de bom
humor e sempre um pouco preocupado, gozador como só ele, e sempre com tempo
para jogar conversa fora com os filhos e com os netos.
Tenho mil e uma
lembranças do meu avô. Desse meu avô de todos os dias. E tenho certeza que se
tivesse tido tempo de conversar com meu irmão, meus primos, meu pai e meus
tios, essa lista de memórias ia ser infinita.
É muito triste ver o meu
avô partir. Depois de voltar para casa depois de algumas quantas vezes que ele
foi parar no hospital e que a gente achava que de lá ele não voltaria, eu meio
que fiz uma imagem do vô Nego Duro como um nego duro mesmo. Assim, invencível.
Mas ele não era
invencível. Ninguém é.
E o que consola na hora
da morte é, além da lembrança do vovô que fica, saber que ele segue com a
gente. E não porque eu acredite em qualquer coisa metafísica. Mas porque essa
coisa de família é danada! Nós seguimos por aqui, carregando o vovô em nós, e muito
além de sobrenome, vamos levando o vovô em nós por causa dessa coisa de genes
mesmo.
E olhando para o meu
pai, meu tio, minha tia, meu irmão, meus primos, minhas primas e agora também
os meus filhos, a gente vai reconhecendo um pouco de Nego Duro em todos nós.
Vejo meu avô no meu tio
e na minha tia que têm uma memória invejável. Minha tia e meu pai com um senso
de direção invejável...
Minha tia que troca o
nome de todo mundo. Meu pai que não se abala se não souber cantar a música, já
que ele inventa.
Eu acho que herdei a
oratória. O Bruno, a memória. O Pedro inventa apelido para todo mundo. O
Marcelo se concentra nos seus jogos como meu avô se concentrava nas suas
palavras-cruzadas. A Roberta é uma gozadora de marca maior. A Fernanda adora
contar histórias... Meus filhos ainda são muito pequeticos, mas seguramente vão
carregando algo do bisavô neles também.
E assim vamos indo.
Ontem, quando soubemos
da notícia de que meu avô tinha partido, o Guiba falou para mim que a vida era
assim mesmo: os velhos vão dando lugar aos novos.
O vô Nelson morreu agora
que o André e o Martin nasceram, o que é natural. Lamento que meus filhos não
puderam conviver com o biso deles. Mas eu sei que é natural e só posso mesmo
ficar muito agradecida de ter convivido tanto com o meu avô. E de, mesmo sendo desmemoriada,
ter tantas lembranças dele.
Então, fico por aqui.
Com a certeza de que meu avô aproveitou a vida dele e que ele partiu contente
de saber que a nossa família vai crescendo. E que a vida segue.
Nego Duro, vai com deus
e a virgem maria. E tome banho de bacia.
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