quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sobre lugares e sensações


Estive duas semanas trabalhando no Haiti e escrevi um email para compartilhar minhas impressões com os meus amigos. Por sugestão do Bruno, e considerando que este blog tá bem morto mesmo, achei que valia a pena compartilhar aqui.

Gente, o Haiti é uma loucura. Antes de ir, pensei que a Stéphanie, minha colega que foi comigo e que já tinha ido ao Haiti em duas missões anteriores, estava exagerando sobre o país. Pensei que para quem conhece países como Venezuela, Guatemala ou Panamá, o Haiti seria sussa. Mas não, não é.
É muito pior do que tudo o que já vi (deve ser mais parecido com partes da África, Índia ou Bangladesh).

Os sinais do terremoto estão por todo o lado. Até o palácio presidencial (foto aqui) está completamente destruído. O presidente se instala numa casa ao lado, isso quando ele está no país, já que ele passa a maior parte do tempo em sua casa de Miami. Mas nem vou entrar no tema da política por lá, porque é muito mais profundo.


As pessoas não têm trabalho. Ponto. Para quem conhece, lembra de como é nos países da América Latina em dias de mercado? Fica todo mundo na rua, andando pra cima e pra baixo, vendendo coisas, conversando, fazendo nada? Então, em Port-au-Prince é assim todos os dias. Todos os dias mesmo. E todas as horas do dia. Todas as horas mesmo.



Eu fiquei pensando numa imagem para as pessoas entenderem do que estou falando. Pois pensei no seguinte: imaginem as ruas da Pompeia cheias de muitas subidas e descidas e bem estreitas, com calçadas mais estreitas ainda e de mão dupla, certo? (podem imaginar Santa Tereza no Rio também, acho que é até melhor...), entonces, aí, tirem as casas e coloquem barracas, tendas, empilhados de madeira, concreto, tudo muito destruído, destruído mesmo, sem um pedaço da casa, com as paredes abertas e muitas lonas para tapar e cobrir tudo. Tirem também arvores que eventualmente existam e tirem um asfalto bem feito ou minimamente acabado e incluam no lugar uns buracos do tamanho do mundo. Agora adicionem lixo, muito lixo, em sacos, ao ar livre, empilhados ou espalhados. Fuçando nos lixos, coloquem cachorros, porcos, cabritos e galinhas (muitos e na mesma quantidade). Aí, coloquem as pessoas, muitas pessoas, de todas as idades, andando ou paradas, sempre carregando algo, grandes baldes ou tigelas enormes e pesadas na cabeça, outras pessoas sentadas no chão, vendendo frutas e legumes, vendendo roupas ou produtos de beleza ou minutos de celular, ou bilhetes de loteria. Muitas pessoas vendendo, quase ninguém comprando. Então, adicionem os carros. Dois tipos diferentes de carros, os jipes americanos mais ou menos bem cuidados da elite e da cooperação internacional, e os carros caindo aos pedaços do povo. 


Por último, incluam o transporte coletivo, que é feito por um carro tipo uma saveiro, super coloridos, com desenhos variados, com imagens de jogadores de futebol brasileiros (vi um Messi também, vai...), frases religiosas ou de motivação, enfim, decorados de todas as formas, com uma cobertura alta na parte de trás, em que as pessoas se sentam/empilham para serem transportadas. Como trilha sonora, incluam as buzinas, o tempo todo. E como cenário de background, sol, 32ºC, e chuva, muita muita chuva no fim da tarde, o que gera as enxurradas e subsequentemente as poças, que permanecem pelos próximos dias. Também no background e com uma frequência relevante, incluam grandes caminhões das Nações Unidas carregando soldados ou pedras.



Agora vcs visualizaram Port-au-Prince. E não é assim numa única área. Andei a cidade toda e é assim por todo o lado.



O único (único!) lugar bonito que vi na cidade toda é o palácio destruído. A catedral (aqui), ou o que sobrou dela, também é linda.
Ok, vi também dois restaurantes e um hotel frequentados pela elite local e pela cooperação internacional.






Mas, voltando ao caos. Com a situação descrita, é fácil deduzir que o transito não anda, por óbvio. Não anda. Para ir de um lugar a outro, o normal é levar uma hora. Ainda que seja bem perto. Um dia, ficamos 40 minutos parados dentro do carro na frente de um buraco na rua que estava sendo consertado naquele momento. Era uma encruzilhada de três sentidos (acho que isso não é muito preciso, mas tudo bem) e ninguém conseguia atravessar. Havia um policial tentando coordenar o fluxo, ou melhor, desentalar o sujeito que estava com o carro dentro da cratera, para conseguir liberar minimamente o tráfego e fazer fluir o trânsito. E outros 10 homens (ou mais) em volta, dando palpites. Chegou um mega carrão, de alguma autoridade ou de um endinheirado qualquer, vai saber, e veio cruzando todo mundo na contramão, porque por algum motivo, ele achou que ele ia passar. Todo mundo começou a xingá-lo, afinal, ele travou o transito de tal maneira que era muito difícil visualizar uma saída (foto abaixo). Aí, sabem o que o policial fez? Mandou todo mundo à merda e foi embora. Juro, assim mesmo. Eu e Stéphanie quase descemos para tentar coordenar a coisa. Mas o nosso parceiro local nos proibiu (ainda bem!).


No Haiti, há uma montanha de cooperação internacional. E ao que parece, não está funcionando. São milhões e milhões de dólares investidos para pagar o RH de todas as organizações que deve sobrar bem pouco para investir mesmo em transformar o país. A vontade é de dizer para todo mundo o seguinte: parem tudo, sentem, conversem e tracem um novo plano, porque do jeito que tá, não está funcionando. Ponto.

Fiquei duas semanas por lá (que pareceram seis meses) e não sei o que acho dos haitianos. Não dá nunca para saber se eles estão felizes, tristes ou putos, é sempre muito difícil. Chama a atenção é que eles são vaidosos, muito vaidosos. Estão sempre muito bem vestidos e penteados, o que é bastante surpreendente se você pensar no caos que é a cidade e as casas das pessoas, além do calor que faz por lá. Talvez por esse excesso de vaidade é que o comércio que mais se vê pela cidade é Salon de Beauté para mulheres e Barber Shop para homens. Quando pegamos a estrada, chamou a atenção também a quantidade de funerárias. Pros haitianos, os ritos funerários são super importantes e eles gastam muito dinheiro nisso. Parece que uma das coisas mais sofridas para eles no pós-terremoto foi não poder enterrar propriamente os mortos. Lembram que eles queimaram os cadáveres nas ruas? Então, parece que isso foi muito difícil por lá.


Por lá, visitei também um campo de refugiados, chamado Camp Corail (foto abaixo). Apesar de imaginar que não deve ser fácil viver num campo, eu preferiria um milhão de vezes morar ali do que em PAP. Mesmo. São minicasas de madeira, banheiros públicos compartilhados, luz elétrica eventual, mas tudo é muito mais limpo e organizado do que na cidade.








Aliás, fora de PAP, o Haiti é bonito, devo dizer. As cidades seguem sendo caóticas e feias, mas as praias são maravilhosas. Eu e a Steph passamos o fim de semana em um hotel na Ile-à-Vache (ilha da vaca), um lugar maravilhoso. O hotel era de um francês e por ser a ilha uma rota haitiana e jamaicana pro tráfico de drogas, temo que ele deva ser um big boss do tráfico por lá e o hotel é só fachada ou lavagem de dinheiro. Não sei, não investiguei, só fiquei com a impressão. Talvez se tivesse descoberto algo não estaria aqui para contar a história, né?





Na volta da ilha, nosso carro quebrou na estrada, perto de Les Cayes, uma cidade “perigosa” do Haiti. Nosso motorista não sabia o que fazer (nosso primeiro motorista era surreal, do tipo que vc não sabe se sente dó ou raiva, sabe?) e essa foi uma experiência bem desagradável. Senti medo, o que eu detesto sentir. Medo por ser mulher parada no meio de uma estrada, com um monte de homem parando na estrada não para te ajudar, mas para olhar. Horrível.

Mas além do medo, o que mais me incomodava era a culpa. No Haiti, eu me sentia culpada o dia todo. Culpada por ter uma situação melhor e pensar que as pessoas vivem assim; por sentir nojo de algumas coisas que são cotidianas por lá; por querer trocar de motorista porque ele não fala francês e não conhece bem os caminhos, mas saber que ao pedir para substituí-lo, ele perderá o emprego; por achar o hotel muito ruim quando o meu quarto é muito maior do que a casa da maioria das pessoas; por saber que estou por lá trabalhando com algo que pode melhorar um pouquinho a vida das pessoas, mas me sentir meio estelionatária porque sei que, do jeito que a coisa anda, nada vai mudar de fato no fim das contas. Enfim, sabem essa sensação?
Então, e horrível sentir-se mal o tempo todo por sentir-se mal de estar em algum lugar.

2 comentários:

  1. pense no haiti, reze pelo haiti.
    o haiti é aqui.

    o haiti não é aqui.

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  2. Marina quero ti parabenizar por esta postagens sobre o Haiti. À meses procuro alguma materia atual sobre este povo,so achava antes do tremor e semanas do tremor. muito obrigado por me ter esclarecido tantas duvidas. Estou me preparando para fazer um trabalho missionario e social; me sinto na responsabilidade de fazer algo por algumas crianças, e por que não tambem aos os pais. Já imaginava toda essa situação de pobreza extrema, o seu depoimento veio pra me confirmar que nada mudou. Estou gravando um CD Gospel em prol desse projeto, muito em breve você ouvirá falar. foi um prazer; sou grato pelas suas informações. um grande abraço...

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